Era madrugada, ela escrevia deitada sobre a cama, em seu quarto, num hotel de luxo no bairro dos Jardins:
Mãe, Hoje é um grande dia, mas não de alegrias como as que eu dera a você até hoje.
Tenho pouco tempo é não pretendo me estender. Apenas venho pedir-lhe clemências, e se conseguir, lembre-se somente de tudo que vira até este momento.
Recorde-se da menina que saiu de casa cedo para morar mais perto do trabalho. Da menina, independente, com coragem para fazer as coisas que fiz para vê-la feliz.
Da menina que quando chegava do trabalho ligava para mãe e conversava por horas com ela. Peço a você, mãe, não deixe as pessoas saberem quem eu sou, conte apenas as minhas atitudes até a data de hoje. Afinal, essas foram as verdades arquitetadas por mim e se você nunca soubesse disso, você morreria com elas.
Perdoe-me, não fui corajosa o bastante para enfrentar a vergonha da pessoa que mais amo no mundo.
Serei sempre a sua filinha.
Adeus.
Adriana.
Rasgou a folha do caderno, levantou da cama, deixou o papel sobre a cama, olhou no relógio e pegou as chaves na escrivaninha. Saiu apressada, com o olho avermelhado. No elevador, tentava colocar a folha dobrada em quatro partes dentro de um envelope amarelo e formal.
Ligou o carro, com as mãos meio tremulas saiu dirigindo um honda civic zero. O rádio tocava uma música agitada. No banco do passageiro estava o envelope e uma bolsa preta de couro. Ela colocou um velho CD para tocar, no disco podia se ler: Legião Urbana. Procurou uma música lenta, achou Giz. Nos primeiros versos lagrimas começaram a descer dos seus olhos, ela passou a mão no rosto enquanto sussurrava a letra da canção e, ao mesmo tempo, chorava oprimidamente.
Atravessou a cidade em pouco tempo, o dia estava ameaçando amanhecer. Estacionou o carro na frente dum prédio antigo, pegou o envelope, saiu do carro e com o mesmo molho de chaves abriu o portão.
Nas escadas as pernas bambeavam mesmo em lento esforço para se chegar ao andar. O número grafado a tinta na parede a fez abrir uma porta, deu de cara com outras duas. Parou, respirou profundamente, sentiu como se um raio fosse despejado em sua cabeça. O claro debaixo da fresta anunciava o romper do dia. Agachou lentamente e passou o envelope para o outro lado. Ao levantar sentiu uma tontura e pensou que desmaiaria, debruçou-se na parede e sugou o máximo de ar possível - não desmaiou.
Correu pelas escadas, soluçava como uma pessoa aterrorizada. Na entrada do prédio foi interpelada por um senhor, com um saco de pães na mão. Não ouviu e na verdade nem viu o senhor perguntar a ela o que houvera.
Entrou no carro, a música tocava, mas a letra não poderia ser mais entendida por ela, seu estado de inconsciência não permitira isso. Um pouco mais calma, viu-se descendo do carro, na garagem do hotel. A bolsa no banco do passageiro permaneceu no mesmo lugar, ela saiu apenas com as chaves. Tomou o elevador, os ponteiros do seu relógio marcavam exatas seis horas. Ninguém no elevador, pois os moradores não possuem o hábito de transitar por estas horas.
A chave não penetrava a porta. Com imensa dificuldade conseguiu abri-la e se jogou na cama, enquanto soluçava, e de tanto soluço parecia que iria desfalecer, se contorcia, se debatia, se arrependia de ter nascido.
Levantou da cama, se pôs em frente o espelho, se olhou, permaneceu assim por alguns minutos, mas não notou o tempo passar. Puxou bruscamente a gaveta da mobília instalada abaixo do refletor. E retirou um objeto envolvido por uma flanela azul, desembrulhou o objeto, encaixou-o na mão direita, levantou o braço até a altura da cabeça. A mão e a cabeça eram separadas apenas pelo ferro cromado em prata.
Ela respirou fundo; fechou os olhos e não titubeou. De fora de seu apartamento foi possível escutar o disparo áspero e seco. Mesmo com uma queda violenta o chão foi o seu limite.
O relógio despertou às oito horas em ponto. De prontidão a senhora abriu os olhos e desligou o alarme. Levantou-se, de camisola foi até o banheiro, urinou, lavou o rosto e caminhou á cozinha, passou despercebida pelo envelope. Ligou a televisão em cima da mesa e pegou os apetrechos para preparar o café, feito sempre de maneira prosaica.
A água esquentava, nisso resolveu ir trocar de roupa. A caminho do quarto chutou, sem querer, o envelope amarelo. Estranhou. Pegou na mão e olhou em volta dele, não viu nada mais do que duas palavras, dentre uma dessas um nome feminino desconhecido.
Ainda então não havia entendido nada do que o jornalista falara, nem mesmo as propagandas anunciadas. Abriu o envelope, achou um pouco grande para a pequena folha que guardava. Desfez as dobras da carta e começou a ler.
Não entendeu o que a filha quisera dizer com aquelas palavras. Pensou em pegar o telefone, mas desistiu, estava muito cedo. Quando leu a falta de tempo da filha começou a se preocupar. As desculpas; os perdões; por quê? Não entendia e se perguntava. Sentou na cadeira encostada a parede e sentiu um estremecer no seu corpo, de repente uma sensação horrível dominava o seu juízo.
Ao resvalar o olhar que ficara imóvel por uns segundos pela televisão, viu uma foto de Adriana, foto que ela mesma tirara. Em seguida se ajoelhou em frente à televisão, e começou escutar a matéria:
É encontrada morta, com um tiro no lado direito da cabeça, Adriana Ferreira Batista, garota de programa. Aparentemente sua morte foi provocada por suicídio. A polícia civil faz investigações acerca do caso para confirmar as suspeitas. Sabrina, como era conhecida em seu meio profissional, foi presa no início desta madrugada, com o cantor Samuel, vocalista da banda X. Os dois estavam totalmente embriagados e portavam, no carro do cantor, 300 gramas de cocaína. Os advogados de Samuel entraram com pedido de habeas-corpus, os dois foram soltos para aguardar o julgamento em liberdade. O cantor aguarda o julgamento. Adriana foi encontrada morta às seis e dezessete.