sábado, 17 de janeiro de 2009

Carta de alforria.

Era madrugada, ela escrevia deitada sobre a cama, em seu quarto, num hotel de luxo no bairro dos Jardins:

Mãe, Hoje é um grande dia, mas não de alegrias como as que eu dera a você até hoje.

Tenho pouco tempo é não pretendo me estender. Apenas venho pedir-lhe clemências, e se conseguir, lembre-se somente de tudo que vira até este momento.

Recorde-se da menina que saiu de casa cedo para morar mais perto do trabalho. Da menina, independente, com coragem para fazer as coisas que fiz para vê-la feliz.

Da menina que quando chegava do trabalho ligava para mãe e conversava por horas com ela. Peço a você, mãe, não deixe as pessoas saberem quem eu sou, conte apenas as minhas atitudes até a data de hoje. Afinal, essas foram as verdades arquitetadas por mim e se você nunca soubesse disso, você morreria com elas.

Perdoe-me, não fui corajosa o bastante para enfrentar a vergonha da pessoa que mais amo no mundo.
Serei sempre a sua filinha.
Adeus.
Adriana.

Rasgou a folha do caderno, levantou da cama, deixou o papel sobre a cama, olhou no relógio e pegou as chaves na escrivaninha. Saiu apressada, com o olho avermelhado. No elevador, tentava colocar a folha dobrada em quatro partes dentro de um envelope amarelo e formal.

Ligou o carro, com as mãos meio tremulas saiu dirigindo um honda civic zero. O rádio tocava uma música agitada. No banco do passageiro estava o envelope e uma bolsa preta de couro. Ela colocou um velho CD para tocar, no disco podia se ler: Legião Urbana. Procurou uma música lenta, achou Giz. Nos primeiros versos lagrimas começaram a descer dos seus olhos, ela passou a mão no rosto enquanto sussurrava a letra da canção e, ao mesmo tempo, chorava oprimidamente.

Atravessou a cidade em pouco tempo, o dia estava ameaçando amanhecer. Estacionou o carro na frente dum prédio antigo, pegou o envelope, saiu do carro e com o mesmo molho de chaves abriu o portão.

Nas escadas as pernas bambeavam mesmo em lento esforço para se chegar ao andar. O número grafado a tinta na parede a fez abrir uma porta, deu de cara com outras duas. Parou, respirou profundamente, sentiu como se um raio fosse despejado em sua cabeça. O claro debaixo da fresta anunciava o romper do dia. Agachou lentamente e passou o envelope para o outro lado. Ao levantar sentiu uma tontura e pensou que desmaiaria, debruçou-se na parede e sugou o máximo de ar possível - não desmaiou.

Correu pelas escadas, soluçava como uma pessoa aterrorizada. Na entrada do prédio foi interpelada por um senhor, com um saco de pães na mão. Não ouviu e na verdade nem viu o senhor perguntar a ela o que houvera.

Entrou no carro, a música tocava, mas a letra não poderia ser mais entendida por ela, seu estado de inconsciência não permitira isso. Um pouco mais calma, viu-se descendo do carro, na garagem do hotel. A bolsa no banco do passageiro permaneceu no mesmo lugar, ela saiu apenas com as chaves. Tomou o elevador, os ponteiros do seu relógio marcavam exatas seis horas. Ninguém no elevador, pois os moradores não possuem o hábito de transitar por estas horas.

A chave não penetrava a porta. Com imensa dificuldade conseguiu abri-la e se jogou na cama, enquanto soluçava, e de tanto soluço parecia que iria desfalecer, se contorcia, se debatia, se arrependia de ter nascido.

Levantou da cama, se pôs em frente o espelho, se olhou, permaneceu assim por alguns minutos, mas não notou o tempo passar. Puxou bruscamente a gaveta da mobília instalada abaixo do refletor. E retirou um objeto envolvido por uma flanela azul, desembrulhou o objeto, encaixou-o na mão direita, levantou o braço até a altura da cabeça. A mão e a cabeça eram separadas apenas pelo ferro cromado em prata.

Ela respirou fundo; fechou os olhos e não titubeou. De fora de seu apartamento foi possível escutar o disparo áspero e seco. Mesmo com uma queda violenta o chão foi o seu limite.

O relógio despertou às oito horas em ponto. De prontidão a senhora abriu os olhos e desligou o alarme. Levantou-se, de camisola foi até o banheiro, urinou, lavou o rosto e caminhou á cozinha, passou despercebida pelo envelope. Ligou a televisão em cima da mesa e pegou os apetrechos para preparar o café, feito sempre de maneira prosaica.

A água esquentava, nisso resolveu ir trocar de roupa. A caminho do quarto chutou, sem querer, o envelope amarelo. Estranhou. Pegou na mão e olhou em volta dele, não viu nada mais do que duas palavras, dentre uma dessas um nome feminino desconhecido.

Ainda então não havia entendido nada do que o jornalista falara, nem mesmo as propagandas anunciadas. Abriu o envelope, achou um pouco grande para a pequena folha que guardava. Desfez as dobras da carta e começou a ler.

Não entendeu o que a filha quisera dizer com aquelas palavras. Pensou em pegar o telefone, mas desistiu, estava muito cedo. Quando leu a falta de tempo da filha começou a se preocupar. As desculpas; os perdões; por quê? Não entendia e se perguntava. Sentou na cadeira encostada a parede e sentiu um estremecer no seu corpo, de repente uma sensação horrível dominava o seu juízo.

Ao resvalar o olhar que ficara imóvel por uns segundos pela televisão, viu uma foto de Adriana, foto que ela mesma tirara. Em seguida se ajoelhou em frente à televisão, e começou escutar a matéria:

É encontrada morta, com um tiro no lado direito da cabeça, Adriana Ferreira Batista, garota de programa. Aparentemente sua morte foi provocada por suicídio. A polícia civil faz investigações acerca do caso para confirmar as suspeitas. Sabrina, como era conhecida em seu meio profissional, foi presa no início desta madrugada, com o cantor Samuel, vocalista da banda X. Os dois estavam totalmente embriagados e portavam, no carro do cantor, 300 gramas de cocaína. Os advogados de Samuel entraram com pedido de habeas-corpus, os dois foram soltos para aguardar o julgamento em liberdade. O cantor aguarda o julgamento. Adriana foi encontrada morta às seis e dezessete.


12 comentários:

Zuchetto disse...

Que forte!
Dramático e Trágico...
Uma mistura muitas vezes comum, mas sempre interessante...
Intenso...

PARABÉNS!!!

Deh disse...

Olá!

Gostei muito desse texto... ele ate me inspirou a escrever um.
Espero q vc não se importe...

bjo

Anônimo disse...

Puta que pariu! vc matou ela !

nossa muito bom... forte surpreendente!

a hora que eu mais gostei tirando a ritmia cardiaca do ultimo paragrafo rsrs foi qdo ela sai feito louca da casa da mae ... me fez sentir a adrenalina que ela estava sentindo... muito bom

bela descrição,
parabéns

Anônimo disse...

Oi, Nelson, como vai ?

Demorei, mas cheguei até aqui.Parabéns pelo blog, pelos textos. Não vou comentá-los com detalhes ou cuidados. Vou dizer o que acredito ser o mais importante: seus textos têm alma, têm sentimento.

A técnica, o rigor, o primor vêm com o tempo e, se não vierem, também não farão falta.

Beijos

Ana

Anônimo disse...

Gostei muito do texto, consegui sentir as emoções da personagem ao ler.. escreva mais, sempre mais, quero ter um primo escritor logo eu que amo ler!
Parabéns, beijao.

Anônimo disse...

ops, não era pra sair anonimo hahaha.. é a Andréia tá? beijos.

Unknown disse...

Heeelooo!!
to aki cabeçaa!!!

caraaksss.. vc virou escritor e eu nem sabia!!!
meus parabénssss! rsrsrs

bjoksss

pronto.. agora vc não vai mais me matar! kkkk

Vinícius Vilches Vieira disse...

Pois é, a vida nos reserva coisas inimagináveis, não?

Estamos vivendo nossas míseras vidas, quando derrepente encontramos algo que muda todo o rumo da nossa história. Uma vez me disseram que notícias ruins chegam rápido, o problema é que infelizmente, as notícias boas nem sempre mudam nossas vidas, já as ruins sempre mudam algo em nós. Nos ensina a ser mais fortes, a ganhar uma experiência inesquecível, uma lição para toda a vida, enfim.

Escutar de vez em quando o desabafo de alguém pode salvar uma vida, por mais que isso irrite ou atrapalhe um pouco, "Adriana" talvez não teve coragem de desabafar com a mãe, talvez ela tenha tido a oportunidade de desabafar com alguém para aconselhá-la ou talvez não tenha sido nada disto; mas acredito que para esta última hipótese a probabilidade é bem menor.

Nelvis, meu brother o texto ficou simplesmente "louco", nada mais a declarar!

Grande abraço!

Marcelo Fabri disse...

Mais uam festa com vinil no bote do Jesus hein? Dia 07/02. Quero ver se desta vez consegue vir. Não cozinharei, mas comida de boteco vai ter sim. Meu aniversário e da Paula.
Deposi te mando o Flyer.
Abração
MArcelo

Anônimo disse...

nossa Nelson quanta inspiração hein meu... caramba muito bom seus contos... adorei... Parabens.

Nathalia Mosca

Anônimo disse...

Podemos observar um grande amadurecimento principalmente como leitor!

Um incerto escritor disse certa vez que uma boa história é feita com uma bela descrição de detalhes.

Por exemplo: "é encontrada morta com um tiro do lado direito da cabeça (...)", último parágrafo.

Lembrei-me do suicídio do Presidente Vargas, que proferiu o disparo no peito a fim de não ter sua face desfigurada e, consequentemente, preservando sua bela imagem na lembrança das pessoas.

Acredito que "Adriana" poderá ter tido a mesma motivação do ex-presidente, com um outro foco: preservou a bela imagem que sua mãe portava dela, apagando a face que não desejava que sua mãe conhecesse.


Parabéns, Nelsinho!!!
E feliz aniversário!


Um grande abraço,

Rodrigo Oliveira - Natal/RN - de férias em Sampa - :^)

Anônimo disse...

Uma coisa que me faz refletir muito é o dogma da escolha. Dizem que tudo é uma questão de escolha. Eu não concordo e ainda não consigo discordar. Não sei se ela se libertou dessa jaula de carne e osso para ser livre ou se somente trocou de prisão. Porque depois daqui, ainda que eu prefira acreditar que não existe mais nada, eu não sei o que realmente há. O fato é que existem caminhos. A maioria tem volta, tem saída. A gente é que não consegue enxergar. Outra coisa: tudo tem um preço. O preço maior é a vida. Valeria a pena aceitar ofertas orgásticas, prazeres raros e fugazes, poder e tudo o mais por um preço que você nem sabe o quanto custa ou prefere nem imaginar? A gente é seduzido não pela personificação do diabo, mas pelas nossas paixões, nosso diabos internos são os que nos arruinam. As coisas só têm o valor que a gente dá a elas.

Um cheiro!