segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Justiça existe sim.



Não vou dizer meu nome para não correr o risco de ser morto, lá fora tenho esposa e dois filhos que precisam de mim. Completo hoje dois anos de prisão, aqui você consegue contar todos os segundos, o tempo se torna seu maior inimigo.

Fui preso por agredir dois garotos, um de dezessete e o outro de dezoito anos. Sou bombeiro há cinco. A base que eu ficava atendia um grande bairro, e lá, ainda hoje, só existe esta. O bairro é enorme e a nossa capacidade de atendimento é medíocre, se houver mais de cinco acidentes, não importando a espécie, não conseguiremos dar conta de pelo menos um deles. Foi o que aconteceu.

Numa noite de sexte-feira, dia dos piores acidentes de carro que se possa imaginar. Estávamos lá, eu e os outros, jogávamos videogame, eram dez e quarenta. E incrivelmente os cinco carros de resgate; entre eles ambulância, caminhão pipa e viatura, estavam lá. Quando, raramente, acontecia isso ficávamos felizes, óbvio não pela falta de trabalho e sim porque ninguém se machucaria.

Decidi entrar na corporação após salvar uma menininha de seis anos, de uma casa vizinha onde eu morava antigamente com os meus pais, antes de casar. Era um incêndio, a casa já estava quase completamente tomada pelas chamas. Foi quando percebi que se os bombeiros demorassem mais alguns minutos a menina não escaparia da morte. De impulso me enrolei num cobertor e corri para dentro da casa, fui guiado pelo choro ensandecido da menina. Ela estava num canto da casa, quando me viu pulou no meu colo, agarrei com força e a embrulhei no cobertor, a velocidade do tempo foi incrível.

Quando vi já estava fora da casa e um bombeiro estava retirando a menina desmaiada dos meus braços. Fiquei olhando para ela enquanto algumas pessoas me perguntavam se eu estava bem. Eu só olhava e não conseguia responder. Um bombeiro veio falar comigo, fez curativos em mim, sofri queimadura de primeiro grau nas pernas, nada grave. A menina foi reanimada, eu corri olhá-la, um deles tentou me impedir, mas não conseguiu. Criei forças sobre-humanas. Ela se lembrou de mim e chorou. Senti a melhor sensação da minha vida.

A ultima hora que olhei no relógio foi quando a sirene de alerta disparou, as dez e cinqüenta e cinco. Eu e mais treze fomos nos vestir, nisso os outros doze que estavam vestidos saíram para atender o chamado.

Duas das ambulâncias saíram em disparada, nesse momento eu já estava me norteando sobre os acidentes: uma batida de carros numa movimentada avenida envolvendo supostamente doze pessoas.

Nesses momentos o jogo era interrompido, ficávamos em alerta. Ainda tranqüilos, a explicação para o pequeno movimento veio de um amigo, essa sexta-feira era início das férias do meio do ano, bastante gente vai viajar.

Nosso sossego termina quando recebemos o segundo chamado, incêndio em um edifício residencial, saem mais dois carros; um caminhão pipa e uma ambulância. Um dos dois atendentes entra em contato com base do bairro vizinho para verificar as condições de reforço. Se as chamas que estão no prédio não forem controladas em pouquíssimo tempo o prédio estará em cinzas.

Nisso, restam eu, os atendentes e mais dois pares. Olhamos-nos, uns aos outros, todos com o mesmo pensamento, todos meditamos para que o telefone não tocasse. Todos na mesma vibração. Sempre era impossível conversar nesses dias difíceis que passávamos. Não tínhamos assunto. Só pensávamos em mães, irmãs, esposas, filhos, avós, amigos e etc. Que com um pouco de azar poderiam não ver nunca mais os seus queridos. Nesse momento, vinha à tona o amor que sentimos por nossos familiares.

Nossas preces não foram ouvidas. O telefone toca, chamada a dez, quinze minutos de distância. Uma senhora implora por socorro, seu marido está sofrendo uma parada cardíaca. Saímos em total velocidade para atendê-lo. O tempo nessa hora é contrário ao da cadeia, para de passar, estaciona-se.

Já na ambulância, ultimo carro, um atendente do posto entra em contato através do rádio. Uma segunda chamada é orientada pelo sargento que nos acompanha. Sua ordem é para irmos ao sentido oposto donde está o senhor, para atender a quatro jovens que colidiram o carro contra um poste, estavam em alta velocidade. É a regra, atenderemos primeiro o acontecimento com maior número de pessoas ou, se não, os mais jovens.

O sentido é oposto, mas não é longe, chegamos ao local, uma rua de grande movimento. Na altura do número informado não vemos agitação anormal, nem acidente, rodamos um pouco, perguntamos as pessoas e nada. Confirmado: nenhum acidente na região. Na hora, pego o rádio e peço ao atendente que rastreie a ligação falsa.

Nosso carro voa em direção a casa da velha desesperada, todos com mau pressentimento, todos calados. A sirene soa nas ruas que cortamos com toda velocidade, os carros se espremem para nos dar passagem. Chegamos à rua informada pela senhora, encontramos sua casa com o alvoroço de dez pessoas na porta. A rua é pouco movimentada, o carro é parado em cima da calçada. Entre as pessoas, corro e cruzo a porta de entrada da casa, quando olho para o chão está à senhora, deitada junto ao marido. Em torno, quatro pessoas falando coisas que não consegui compreender.

Aproximo-me do casal estirado no chão, a velha soluça e chora ao mesmo tempo em que balbucia algumas palavras.

- Vocês demoraram demais. Ele não agüentou.

Ela beijava a face do senhor de cabelos grisalhos, alto e forte, com aparência saudável, e repetia:

- Meu amor, eu te amo, eu te amo. Por que vocês demoraram tanto, por quê?

Começo a checar os batimentos, não é mais necessário. Meu amigo chega com o desfibrilador. Uma, duas, três. Nada. De novo, uma, duas, três. Parece que perdi a visão, minha adrenalina transbordava. Pronto, não havia mais nada a fazer, levantei e fui para fora da casa. O sargento pediu que eu ligasse para o IML, enquanto ele foi conversar com a viúva, então, fui até a ambulância; liguei, os avisei, acionei o contato para dar a partida do automóvel. O sargento saiu e olhou, e eu, de dentro do carro, disse:

- Já chamei o IML.

Sai cantando os pneus da ambulância, pelo retrovisor vi o sargento levantar os braços e colocar a mão na cabeça. Bati um rádio para o posto, peguei o endereço de onde foi feita a ligação do falso acidente, dirigia como louco, em alta velocidade. Um apito soa dentro do carro, é o sargento que pergunta para onde vou e o que estou fazendo, da primeira vez não respondo. Ele insiste e pergunta de novo, ameaça me expulsar da corporação.

É quando pego o telefone e digo que vou atrás do(s) assassino(s), sou repreendido, mas não mudo de idéia, ele novamente faz ameaças e diz que isso é trabalho da polícia. Nesse momento, desligo o rádio e quando vejo estou bem próximo à rua das vítimas que só existiam na cabeça(s) de alguém, alguém sem amor a vida.

Sigo devagar, a rua está calma, coisa não habitual, entro numa de suas travessas, ando lentamente, o carro só mantém a ultima acelerada. A rua se compõe por prédios e casas residenciais, mais casas do que prédios. Na segunda esquina, ainda longe, avisto um orelhão e, perto a ele, um grupo de algumas pessoas. Mantenho a mesma velocidade, desligo a sirene, os faróis, me aproximando, mais perto escuto risadas e uma conversa, já é noite.

Passo um carro, o último que está estacionado antes do orelhão. Ligo a sirene, os faróis, viro o carro cantando pneus, estaciono de frente para o grupinho de quatro meninas e dois meninos, dois moleques. Desci com a arma na mão e com uma cara sombria, os meninos ficaram de pé. Estremeceram-se. Pareciam ver o capeta, quando eu perguntei:

- Quem foi o culpado, quem ligou para nós e quem matou um velho?

Eu gritava e cada vez mais eles se aterrorizavam, as meninas começaram a chorar. Aproximei-me dos moleques e gritei:

- Quem foi?

- Fomos nós dois. Um deles começou a dizer.

- Foi só uma brincadeira. Não queríamos machucar ninguém, estávamos um pouco entediados.

Nesse momento não agüentei e descarreguei um soco em sua cara. O outro pegou meu braço na tentativa de me conter, tomou uma cotovelada no nariz que o quebrou. Os dois caíram. Dei, sem nenhuma dó, uns três chutes em cada um; olhei em volta, parei para respirar, os chutes foram realmente violentos. Então comecei a enxergar, pois antes estava tomado por uma raiva que me cegou.

Começou a juntar uma porção de gente pedindo para eu parar. Chegou uma ambulância, dentro o sargento e mais dois colegas, em seguida chegou também a polícia. Um senhor anônimo se aproximou e, apontando o dedo para a minha cara, começou a repetir:

- Você não sabe o que fez. Não sabe o que fez.

Eu fui tentar dizer à polícia o ocorrido, meu sargento me segurou para evitar que eu interrompesse a conversa do senhor anônimo com eles. Escutei do meu sargento que eu seria julgado e iria responder um processo, pois não tínhamos provas contra os moleques, contei a ele a confissão, mas ele disse não importar, pois agora eles diziam não ter feito nada, segundo eles eu cheguei e os agredi.

Fui pego pelos braços por dois policiais e levado à viatura. Dentro do carro, fui espancado, me bateram para valer. Eu tentava contar a história aos policias e eles diziam que eu arrumei com gente errada. Chegamos à delegacia, não conversei com o delegado e fui direto para uma pequena cela nojenta cheirando a comida podre.

Dentro de dez minutos chegou meu sargento, minha esposa e um parceiro. Minha esposa chorava e beijava-me através das grades, minhas lágrimas não demoraram a aparecer. Chegou meu pai assustado, dissera ter ligado para um advogado conhecido. O advogado chegou, conversou comigo, pediu todos os pontos e, em seguida, foi ter com o delegado.

Passei a noite preso na delegacia. Minha esposa não ficou, insisti para que fosse embora descansar. Nem eu, nem ela, imaginávamos que eu havia de passar muitas outras noites assim; porém pior, na cadeia mesmo.

No dia seguinte, logo cedo, chegou o advogado. Eu não dormi um minuto, pensava em meus filhos, em minha esposa, em minha casa. Ele veio me dizer sobre o seu comprometimento para tirar-me dali, pediu paciência, pois precisaria entrar em contato com o pai de um dos garotos, um deputado com influências e poder.

- Por favor, faça o que puder, eu pagarei quanto você quiser. Preciso sair daqui, não sou bandido. Preciso ver meus filhos. Eu disse a ele.

Perguntei sobre os garotos, se eles haviam sido presos. E não, eles não foram. Um deles é menor e, de qualquer forma, a polícia não tem provas. Percebi não ser interessante para a polícia investigar um “crime” cometido pelo filho de um deputado.

Já no outro dia, recebi a visita não só do advogado, mas também a de um amigo do trabalho. Eles vieram me contar a idéia de ir num jornal, numa emissora de televisão denunciar o fato, afinal de contas passam tantas coisas tristes na mídia, o meu caso seria só mais um. Isso ajudaria a tirar a polícia da estagnação diante ao crime, moveria dúvidas na cabeça das pessoas, da massa, quanto à solidez moral deste deputado. E foram com toda esperança. A minha crescia; já me imaginava lá fora com meus pequenos correndo junto a eles pelo parque.

Até que passou uma semana, pensava eu: não tarda a chegar, logo, logo, um repórter de TV ou de rádio, sei lá. Sei que isso ajudaria muito no meu caso. Passou duas semanas, e nada. A visita do advogado e do meu amigo eram constantes, dia sim, dia não, eles vinham, diziam ter ido novamente no jornal. Esperássemos mais um pouco, fosse o que fosse, estavam apurando a veracidade dos fatos, seremos pacientes. Consolávamos uns aos outros e eu era o maior consolado, desesperado, impaciente. Também, não para menos.

Passaram-se mais dois dias, não recebi visitas, não falei com ninguém. Sensação horrível. Lembrei da senhora chorando e lembrei dos seus olhos dizendo ao mundo que perdera a razão de viver. Chorei; chorei por saber que isso; tudo isso, poderia ter sido evitado. Reproduzi nos meus pensamentos o meu ato de fazer justiça com as próprias mãos. Não me orgulhei. Fui errado, assumo minha culpa.

Minha mulher vinha me ver uma vez na semana a pedido meu. Se dependesse dela viria todos os dias. Mas não quero isso, aqui não é ambiente para ela e odeio que me veja nessas condições, nesse lugar nojento. Na ultima visita ela me disse sobre as traquinagens dos meus filhos. Não pude conter as lágrimas enquanto ela me abraçava e dizia que, já, já, eu sairia daqui.

Sem explicações fui transferido para um centro de detenção, fiquei desesperado e percebi que a coisa era mais seria ainda. Fiquei numa cela especial, aquelas para quem possui nível superior. De especial ela não tem nada, a única diferença é o número de detentos, pois as celas que vi entre especiais e não especiais são do mesmo tamanho e tem as mesmas coisas.

Minha esposa, meu amigo e meu advogado apareceram no mesmo dia. Conversei bastante com ela e disse que não estava mais agüentando aquilo, estava pensando em fugir. Ela me repreendeu e me fez perceber a importância de não me complicar ainda mais. Já meu amigo e o meu advogado vieram me contar sobre uma visita que receberam após alguns dias de terem ido à emissora de televisão.

No final da semana, dia de suas folgas, dois homens batem nas suas portas, fazem as mesmas perguntas e dizem as mesmas coisas.

- Você é advogado/amigo do rapaz que bateu no filho do deputado, não é? É, nos sabemos. Só viemos avisar que não vai adiantar fazer nada, a mídia não vai se intrometer a pedido do deputado. Você tem família, certo? Então pare de se intrometer, para que a sua vida continue assim, junto com a sua família. E, também, para que a sua família continue bem e saudável. Ele vai ficar preso o tempo necessário para aprender a não mexer com quem não se deve mexer.

Escutei tudo isso com um torpor que se multiplicava cada vez mais. No final do relato eu estava paralisado olhando para os dois. Os dois não se envolveriam mais, pois, como dito, não iria adiantar. Entendi a decisão deles e também concordei: assim será melhor. O advogado disse que conversou com o delegado e soube que eu vou ser solto após três anos e realmente não há nada a se fazer. Só resta esperar.

Minha decepção com a justiça que eu achei que vigorava me abalou profundamente. Aprendi muitas coisas com isso. A justiça existe sim, depende apenas do seu saldo bancário e de suas influências. Agora, estou aqui esperando o tempo passar, matando o tempo para ele não me matar. Dentro de um ano estarei com meus pequenos. Meu filho de dois anos e dois meses não me conhece, aliás, ele me conhece por foto, e minha filha, que tem cinco anos, pergunta todos os dias por mim. Ela sabe que estou preso, minha esposa contou. Todas as vezes que minha filha pergunta o motivo de eu estar preso, minha esposa, com os olhos cheios de lágrima, responde:

- Filha, seu pai está preso porque é um herói.