Em uma das minhas viagens lisérgicas, – talvez a maior de todas –, fui parar em um lugar muito interessante. Diferente de todos já conhecidos, inesquecível. Tão utópico, tornou-se difícil de exprimir com fiel asseveração. Mas bem, vamos lá.
Só lembro da chegada em diante, como fiz para chegar não sei. Minhas memórias denunciaram a primeira cena assim: dia; doze horas da tarde, calculei pelo sol a pino que se plantava sobre a minha cabeça. Caminho de dentro de um rio, distante da margem a água batia na minha cintura. Pisando na terra observo as pessoas fora d’água. Ainda distante, não consigo diferenciar homens e mulheres. Maquinalmente eu caminhava à margem, com um leve torpor de quando bebemos água a contragosto. Nesse tempo consegui medir a beleza do lugar.
Árvores de tamanhos diferentes, o rio com dimensão bem significante e atrás duas cachoeiras sustentadas pelas rochas que se encarregavam de fazer chegar sombra as casas instaladas a alguns metros de fora da margem.
Mais um pouco de caminhada e fui notado. Engraçado, senti medo. Aquele medo do perigo que os covardes, nós, das grandes metrópoles sentimos quando alguém na rua nos dirige a palavra, mas na verdade não existe ameaça nenhuma, a não ser a criada pelas nossas mentes férteis que contam com a contribuição da cultura do medo. Agora, como disse, acho engraçado, pois logo eu que pensava não ter medo de coisas tão simples - me enganei.
Interromperam o futebol para receber o desconhecido: eu. Assustado, fui me aproximando, enquanto todos me olhavam dos pés a cabeça, reparavam na minha roupa, totalmente diferente da deles e olhavam-se, uns para os outros. Aproximaram-se, abriram um puta sorriso, começaram a se comunicar comigo. Uma língua sem influencia das já ouvidas por mim. Não nos comunicamos verbalmente, mas como esta é apenas uma das formas de se entender, não tivemos problemas.
Trouxeram-me um coco grande e pesado com um buraco. Deliciei-me com o coco sem igual. As pessoas me olhavam e queriam saber coisas sobre mim, deduzi. Daí em diante, eu notei um homem pedir aos outros para me deixarem descansar. Sentei na areia, o futebol voltou a ser jogado, eu assistia a maneira engraçada tida por eles de praticar o esporte tão conhecido.
Algumas mulheres jogavam junto deles, todas lindas, morenas de cabelos lisos, eu impressionado com aquilo. De repente, chegou mais algumas pessoas de trás do mato que formavam barreira atrás de todas as casas, uma do lado da outra. Uma porção de homens e mulheres e com eles baldes de madeira, nas mãos de cada um. O futebol foi interrompido; foi-se contribuir na limpa do almoço: peixes. Gosto de peixes, mas não comia a tempo, fui contribuir também.
As mulheres sorriam para mim, os homens também, só que os sorrisos delas eram diferentes. Enfim, o almoço estava servido. Deliciei-me e, após comermos, apareceu um deles com um violão. Formou-se uma roda de cinqüenta pessoas, alguns, na verdade vários, foram se aconchegar às redes instaladas nas cabanas, dormiram. Enquanto a viola tocava uma música calma e relaxante que se aproximava de um reeage jamaicano, eu pensava em não sair mais daquele lugar. Comida, pessoas, mulheres, enfim; comunidade.
Arrisquei-me. As pessoas cantavam baixinho para não interpor o som do instrumento, todos sorridentes. Nisso, - quando o tocador passou seus olhos em mim -, fiz um sinal e fui atendido de prontidão. Terminada a música ele se levantou e trouxe o violão, sentou-se ao meu lado, pronunciou algumas palavras que julguei, mesmo sem entender, ser uma pergunta ou um pedido do tipo: toque alguma coisa para nós.
Penso que até este momento eles supunham que eu fosse mudo, afinal, eu não havia dito nada. Resolvi quebrar o silêncio. Meio tímido, com o olhar cerrado, um pouco inseguro, me aventurei e mandei “Chega de Saudades” (Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim). No começo eles olharam para mim e se olharam, até absorverem a felicidade da canção que os contagiou e fez sorrisos brotarem naqueles rostos queimados pelo sol. Eles não cantavam, mas se arriscavam a acompanhar a música com balbucios no mesmo timbre da voz e do violão.
Terminei de tocar. Todos se levantaram e bateram palmas, enquanto eu me recuperava da honraria - um tanto desajeitado, eles se sentaram novamente e pediram mais. Aliás, o mesmo violeiro fez gestos para eu continuar a tocar e a cantar. Dessa vez eu arrisquei a levar uma das músicas mais tocadas no mundo: “Garota de Ipanema”, dos mesmos autores de “Chega de saudades”. Fiquei surpreso quando eles acompanhavam suavemente, porém com mestria, a melodia do violão fazendo assim uma espécie de coro seguindo o instrumento. Emocionante.
Como previsto, a música terminou e novamente, de pé, fui aplaudido. Sem saber como agradecer me aproprie do único gesto que nesse momento eu poderia utilizar: a clássica inclinação da cabeça e do tronco à frente, para representa agradecimento.
Depois disso levantamos encerrando o momento musical e fomos comer, ou melhor, jantar. Um banquete regado a frutas de tipos diversos, pães - esses no caso eu não consegui descobrir como eram feitos, pois por lá não vi fornos - e sucos totalmente naturais, não a como comparar com as frutas degustadas aqui na civilização de concreto.
O dia começava a virar noite, as pessoas conversavam, apontavam na minha direção e sorriam. Decidi ir ao rio tomar um banho para refrescar. O calor lá é bem forte, mas não incomoda pelo fato do rio ser encostado as casinhas de madeira cobertas por palha. Já dentro do rio, pensando em como tudo aquilo era admirável e sublime, refletindo em como esta comunidade se mantinha com pouquíssimas coisas e assim era feliz, não se fazia necessário mais para eles. Ali, eles tinham tudo o que era preciso para viver, e viver bem. E tudo o que precisavam estava ali também. Distraido, escutei um barulho na água, virei para ver o que era. Era uma menina, na verdade uma mulher; entre seus vinte, vinte cinco anos. Sorrindo; nua, chegou perto e me abraçou, ficou assim por alguns segundos. Eu não entendi muito bem, mas pensei: acho que ela gostou de mim, só isso. Pouparei os detalhes deste acontecimento, pois acho desnecessário.
Voltamos, eu e ela para a tribo, esse é o apelido que criei à comunidade. Quando cheguei havia uma das cabanas prontas, fui conduzido à cabana pela morena do rio e por um homem que sorria e conversava com ela. Entendi, prepararam o lugar para o meu descanso. Ainda havia alguns tocando violão em volta a uma fogueira, outros deixavam parte do corpo boiar no raso do rio. Quando chegamos à cabana ela fez sinal, iria entrar para organizar a rede. Eu fiz sim com a cabeça, balançando pra cima e pra baixo. Nisso, me sentei na terra, olhei o céu formado por estrelas com seu fundo azul marinho e vaguei. Vaguei em pensamentos, estava decidido, é isso que quero para minha vida, ficarei aqui para sempre.
Pensei em como as pessoas da cidade – mundo - onde eu moro seriam felizes se a vida fosse assim. Números; só para somar e nunca subtrair, o preço das coisas; apenas a capacidade de caminhar até o que se quer, hierarquia; a vontade das pessoas para preencherem os seus corações de felicidade, a ordem; seja feliz, trate a todos como você quer ser tratado, fila; só se for para tocar violão e, ainda, mesmo assim, se espera sentado.
Passados alguns minutos a morena me chamou. Entrei, deitamos, dormimos. Eu sonhava com essa viagem, no quão bem isso havia me feito e agradecia aos seus, a todos os santos, a todas as forças por ter sido o escolhido a viver num lugar assim.
Então, o despertador do celular foi ativado com a troca dos minutos 44 para 45. No exato momento que se chegou aos 45 min., das 16 horas da tarde, horário de Brasília, no Estado de São Paulo, na cidade de São Paulo, Zona Leste desta mesma cidade, no Bairro do Tatuapé, Rua Apucarana, nº 266, apartamento 134; para ser mais específico: meu quarto, o som do alarme me acordou. Tomei banho e fui trabalhar.